Texto de Kaique Fontes e Kael Avila. Artista de capa desconhecido.
Há algum tempo atrás, o Bi-Sides publicou um texto tanto aqui no blog, como no grupo do Facebook, sobre a diferença entre bi e pansexualidade. O texto veio no intuito de tentar amenizar as brigas e discussões sobre isso. No entanto, tanto dentro do grupo, como fora, a discussão não parou, na verdade ela se torna cada vez mais agressiva e continua apagando ambas as identidades. O texto “Entre Bi e Pan: respeito para além das similaridades”, de Beatriz Hermans coloca a definição de pansexualidade como “atração independente do gênero” ou por “todos os gêneros”, ambas definições bem presentes nas discussões. Para além disso, o texto “Guia básico do movimento pansexual” traz também a importância da diversidade de definições nas identidades sexuais. Em suma, Beatriz recoloca que a luta é conjunta, afinal somos todos monodissidentes (termo cunhado por Dani Vas como proposta de ativismo comunitário, que contempla pessoas que se atraem sexual e/ou romanticamente por mais de um gênero, ou seja, aqueles que não são monossexuais). A importância desse termo se apresenta especialmente na organização de movimentos conjuntos entre bissexuais, pansexuais e polissexuais.
Em 2019, a ativista bissexual autônoma de São Carlos Jussara Ribeiro de Oliveira (que também assinava textos na internet como Anabelle Belmont) escreveu um texto chamado “Bi, Pan, Poli? Aro, Ace? Desafios na construção de um movimento monodissidente”. Nele, ela disserta sobre esse mesmo tópico colocando as várias definições e discussões sobre as diferenças e similaridades dos movimentos monodissidentes. Esse texto funciona muito mais como um acervo de vários outros textos sobre o assunto do que um ponto final propriamente dito, porém algo que ela fala e é importante citar, é que:
“Agora entrando na polêmica posso adiantar que se vocês pautam a discussão das diferenças apenas em linguística vocês vão errar feio todas as vezes. Se ignoram que existem diferenças entre o movimento nacional e o estadunidense também. Se enxergam esses termos como congelados no tempo ainda estão errando. Essas definições são historicamente o cerne de diversas disputas políticas.”
Ela também coloca que a busca por definições fechadas sobre bissexualidade pode ser incessante - e de fato é. No entanto, o blog The Bisexual Index, em seu texto citado por Jussara chamado “Bi by definition” coloca que na verdade não precisamos ter várias definições diferentes e que isso confunde desnecessariamente o movimento. A “definição única” cunhada por eles é a bissexualidade como “a atração por mais de um gênero”, que é realmente uma das mais comuns.
Enquanto isso é um posicionamento interessante, é bom reafirmar, conforme fala o texto “Os nossos significados de bissexualidade” recentemente publicado no Bi-Sides, que as definições de homo e heterossexualidade também são variadas e “confusas”. A diferença é que elas partem primeiramente de um lugar de validação, enquanto o nosso processo de nos definir parte de um processo de invalidação, de achar termos e definições para assim sermos, finalmente, validados. A homo e heterossexualidade já são validadas e as suas definições ou não importam, ou não são o foco.
Ademais, quando reconhecemos a bissexualidade e a pansexualidade não só como maneiras de enxergar e se relacionar com as questões de gênero e sexualidade, mas também como movimentos políticos, carregamos a ideia de que esses movimentos políticos podem ser diferentes, apesar de não se anularem. A busca por definições é importante num ponto em que elas consigam nos abraçar e contemplar - reconhecendo a bi e pansexualidade como movimentos sistematicamente apagados.
Nos últimos 5 anos, período em que começamos a nos inserir no ciberativismo e em espaços de discussão que envolvem bissexualidade e pansexualidade, percebemos que existe uma diferença absurda na maneira como as comunidades tratam deste assunto. Obviamente que o que trazemos para esse texto tem a ver com experiências individuais e subjetivas, o objetivo aqui não é generalizar ou colocar qualquer uma das duas comunidades em caixas nas quais elas não pertencem.
Observamos que o discurso de bissexuais está mais atrelado ao conceito de monodissidência (pensamento conjunto de movimento) e o discurso de pansexuais está mais atrelado às definições de por quem e como se atraem. O curioso dessa análise rasa que fazemos aqui é justamente que esse talvez seja o motivo pelos quais temos tantas brigas. A identidade política da bissexualidade, apesar de enfrentar todos os apagamentos possíveis, se constitui há um pouco mais de tempo do que a pansexualidade, que por sua vez, ainda se apresenta como novidade em muitos espaços e também carrega o estigma de “apenas mais uma maneira de se denominar bissexual”. Quando nós bissexuais nos direcionamos para uma militância conjunta com as pautas pertinentes da pansexualidade, deixamos de considerar que o processo de consolidação dessa identidade se constituiu de maneira diferente da nossa. Ao falarmos sobre monodissidência em detrimento do reconhecimento prévio integral de uma pansexualidade como identidade política autônoma, acabamos tentando igualar movimentos que se diferem em vários pontos, apesar de suas semelhanças. A hipótese é justamente que pensar exclusivamente em uma militância conjunta sem considerar as especificidades de outras identidades pode acabar prejudicando e até mesmo impedindo que a pan e polissexualidade sejam reconhecidas como identidades que não derivam da bissexualidade.
Apesar de acreditar e defender que a união permitiria uma luta mais organizada contra as pressões da monossexualidade, entendemos que precisamos dar dois passos atrás e propor a crítica de que muitas vezes esse ideal se mostra impossível de ser alcançado. A pansexualidade se constitui enquanto identidade política como a recusa de uma definição de bissexualidade que era entendida em determinados espaços como transfóbica. Digo em determinados espaços pois temos diversas demonstrações de como o discurso bifóbico e a noção errônea e binária do “ser bi” se instala nessa definição, que é rebatida pelo Manifesto Bissexual (1990) e não somente por ele. Discurso esse que é possível observar em espaços de discussão da pansexualidade, onde algumas - repito, algumas - pessoas entendem que a identidade seria uma superação da identidade bissexual que carregaria através da sua ressignificação de termos, uma noção ainda transfóbica. Vemos aí um embate onde pessoas bissexuais se propõem a discutir os significados de uma identidade que não lhes cabe, assim como pansexuais também fazem. A noção de uma superação da bissexualidade também se apresenta em espaços acadêmicos, como apontado por Medeiros (2015) em “A ressignificação do discurso pansexual: o jogo do também”.
A proposta de luta conjunta não pode, ou não deveria, representar ameaças a nenhum dos movimentos, pois a intenção é unir-se em contraposição ao entendimento de que o campo das orientações sexuais se limitam apenas ao masculino e feminino. São atravessamentos que vemos em comum entre ambas as comunidades. Ao mesmo tempo em que a proposta de luta conjunta só seria possível se ambas as identidades não interferissem em suas respectivas definições e não reforçassem discursos errôneos sobre si e entre si. O que queremos dizer com isso é que pouco se fala sobre a articulação de movimentos bi que sejam INTEGRALMENTE bissexuais, ou movimentos pan que sejam INTEGRALMENTE pansexuais.
Por alguma razão há um medo não dito da possibilidade de que esses movimentos se organizem separadamente, apesar do fato de que lutamos para sermos reconhecidos enquanto identidades separadas e diferentes entre si.
Entretanto, pontuar a importância da luta conjunta continua sendo relevante. Somos ambos pertencentes a esse “não-espaço” de sexualidade dentro da noção binária, e portanto somos ambos ferramentas de desconstrução da ilusão binária. Isso é, somos aqueles que mostramos ao mundo que a binariedade é uma construção, e acima disso aqueles que desafiam a noção dela no campo das sexualidades - e somos apagados e invalidados por isso.
Aliás. somos movimentos que carregam históricos e contextos diferentes, e isso tem que ser ressaltado para não nos apagarmos politicamente na tentativa de homogeneizar o ativismo. A pansexualidade, apesar de ser ressaltada tendo um início nos anos 90, e talvez tenha tido uma popularidade maior nessa época mesmo justamente pela discussão da transfobia dentro da comunidade LGBTI+, temos registros de pessoas se identificando com o rótulo desde muito tempo, como por exemplo Serguei se dizendo pansexual e falando também da sua aproximação com Janis Joplin e com o movimento hippie em geral (onde, talvez, o termo poderia também ter uma presença e talvez até uma origem, infelizmente, sem maiores registros históricos). Na mesma época, porém em outra contracultura, o termo “bissexual” estava sendo usado pelos ativistas nova-iorquinos dos nascentes movimentos LGBTI+.
Apesar das origens e constituições distintas, não deveríamos temer a junção desses movimentos. O anarquismo e o comunismo serem movimentos diferentes, por exemplo, não anula o fato de que, unidos em grupos antifascistas, eles podem fazer muito mais e lutar pelo mesmo ideal sem perder as noções políticas e sociais de cada movimento. Respeitar as similaridades que nos fazem unir é tão importante quanto reconhecer as diferenças que nos fazem seguir caminhos que, apesar de relacionados, são diferentes; para assim construirmos movimentos, novamente, de maneira integral e centrada nas nossas vivências. Tudo isso sem o receio de que a discussão saudável e produtiva acabe gerando mais rachaduras no caminho em direção ao reconhecimento de nossas identidades como completas e autônomas.
nossa senhora que texto cansativo que nunca vai direto ao ponto....