Por Juliani Damasceno.
A ideia de família instaurada historicamente pela burguesia para preservar a propriedade privada e, consequentemente, o sistema econômico capitalista, vai estruturar e naturalizar o sistema de gênero, a heterossexualidade e a monogamia. Como desencadeamento dessa divisão binarista e essencialista entre os sexos, a bissexualidade foi deliberadamente apagada dos registros históricos e encaixada como somente um resultado da dicotomia entre hetero e homossexualidade, dado que não há como identificar um ato bissexual em si e não era considerado necessário a identificação sexual individual dos sujeitos.
Assim como outros campos do conhecimento científico burguês do século XIX, a sexologia surge com o objetivo de catalogar as sexualidades dissidentes e como resultado desses estudos surge o livro Psychopathia Sexualis de Richard von Krafft-Ebing. Publicado em 1886, foi o primeiro levantamento sistemático e completo dos comportamentos sexuais desviados dos parâmetro tidos como normais, enquadrados como transtornos médico-psiquiátricos, e onde o conceito de bissexualidade teve sua primeira aparição.
A bissexualidade, posta sob o olhar da psicopatologia, foi colocada como uma degeneração do desenvolvimento normal monossexual, cuja origem estaria no distúrbio do estágio embrionário de diferenciação sexual a partir do qual o desejo sexual seria originado como característica secundária, resultando na inversão física e psíquica em que as barreiras entre masculino e feminino ficariam difusas. Antes disso, bissexual se referia a pessoas intersexo com genitália ambígua.
Na década de 60, os movimentos estadunidenses por direitos de gays e lésbicas validaram suas existências a partir da justificativa de que eram como as pessoas heterossexuais, apenas mudando o gênero que amavam e sentiam atração, o que acabou por deslegitimar novamente pessoas bissexuais, colocando-as como indecisas ou como pessoas frustradas que não admitiam suas “verdadeiras identidades sociais como homossexuais”. Ainda, o movimento LGBTQIA+ só passou a incluir a causa bissexual recentemente, isto é, em 1988 nos Estados Unidos e em 2008 no Brasil.
Frente a este cenário histórico de invisibilização, Michael Page, em 1998, como voluntário em BiNet USA, cria a bandeira bissexual que conhecemos hoje, um símbolo de comunidade, acolhimento e resistência. Mantendo as cores magenta, lavanda e azul real, presentes em outros símbolos bi (como os biângulos e as duas luas crescentes), elas são respectivamente dispostas em três faixas horizontais, sendo que a do meio tem metade do tamanho das outras. Page aponta que a bandeira simbolicamente apresenta, através dos pixels roxos misturados nas cores rosa e azul, como bissexuais no mundo material partilham espaços e se inserem em pautas dos campos homo e hetero.
Entretanto, nos meses de abril e maio deste ano, BiNet USA, organização sem fins lucrativos de ativistas bissexuais, tentou fazer da bandeira bi sua marca registrada. A movimentação aconteceu nas redes sociais a partir do contato que a ONG fez com Jayne Shea, advogada bissexual que organizou a primeira parada bi virtual em 24 de abril, pedindo para que ela retirasse a bandeira de seu site alegando que os direitos de copyright são exclusivamente deles. A partir disso a comunidade bi se mobilizou através da #NossaBandeiraBi e da carta online redigida por Miles, the Bissexual, reivindicando uma bandeira de todos, trazendo inclusive a fala do próprio Michael Page de que a bandeira foi criada para ser um símbolo de uso irrestrito pela comunidade.
No capitalismo, a existência de sexualidades divergentes só é aceita quando relacionada ao consumo LGBTQIA+ e ao pink money. As problemáticas envolvidas na tentativa de mercantilização da bandeira bi é tanto colocar nossa identidade a serviço do mercado como contribuir para a invisibilização de bissexuais da classe trabalhadora, dificultando o acesso ao movimento. Além disso, assim como Isabela Sena discute em um de seus textos aqui referenciados, a bissexualidade se opõe ao capital por romper com a divisão sexual em polos opostos e por deixar explícito como essa binarização é artificial, sendo ameaçada ao se opor e existir para além da heterossexualidade e do sexismo.
A luta LGBTQIA+ não pode se restringir a reformas pontuais porque, ainda que importantes, são facilmente despolitizadas e burocratizadas pelo Estado burguês, dado que sua sobrevivência se sustenta na manutenção também das opressões de gênero e de sexualidade. A identidade bissexual se opõe à estrutura social burguesa, portanto inconciliável. Com isso em vista, é necessário um movimento combativo, resistindo para que nossas pautas não sejam apaziguadas, que nossa bandeira não seja vendida e reivindicar sempre o caráter revolucionário da nossa comunidade; uma luta sempre atrelada a um contexto maior de emancipação humana!
Referências
HORST, Claudio Miranda. Movimento LGBT e luta anticapitalista: um elo necessário. Revista Libertas, Juiz de Fora, v.17, n.2, p. 85-98, ago. a dez. /2017
MENEZES, Lucas Lida de. O movimento LGBT+ e os efeitos da fragmentação. João Pessoa: Universidade Estadual da Paraíba, 2018.
PEREIRA, Mário Eduardo Costa. Krafft-Ebing, a Psychopathia Sexualis e a criação da noção médica de sadismo. Rev. latinoam. psicopatol. fundam., São Paulo , v. 12, n. 2, p. 379-386, June 2009
SENA, Isabela. Se assumir bissexual é um ato de resistência. Medium, 2017. Disponível em: < https://medium.com/@isabelapsena/se-assumir-bissexual-%C3%A9-um-ato-de-resist%C3%AAncia-bf0aa4803efa>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.
FILHO, Claudio. Uma carta aberta ao BiNet USA (sobre o copyright da bandeira bi). Medium, 2020. Disponível em: < https://medium.com/@claudioavilafilho/uma-carta-aberta-ao-binet-usa-sobre-o-copyright-da-bandeira-bi-6deb3431aab6>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.
COLETIVO BI-SIDES. Facebook, 2020. Disponível em: < https://www.facebook.com/116999311713603/posts/3189590614454442/>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.
OOSTERHUIS, Harry. Sexual Modernity in the Works of Richard von Krafft-Ebing and Albert Moll. NCBI, 2012. Disponível em: < https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3381524/>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.
Bi. Orientando. Disponível em: < https://orientando.org/listas/lista-de-orientacoes/bi/>. Acesso em: 14 de jun. de 2020.
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