É costume no meu grupo de pesquisa a gente se apresentar e explicar um pouco sobre o que a gente estuda. Sempre que chega na minha vez de falar, eu começo do mesmo jeito: eu sou bissexual e isso é central para entender com o que eu trabalho. Eu não consigo nem quero separar minha luta das outras facetas da minha vida. Criei a noção de monodissidência no decorrer da minha militância e, se hoje ela é tema do meu mestrado, é porque entendo que muito pode surgir e beneficiar as pessoas por ela contemplada. Para entender monodissidência, eu acho importante olhar para a minha trajetória enquanto militante.
Eu me entendi bissexual aos 18 anos, no ano de 2012, e fui me assumir publicamente no ano seguinte. Em 2013 eu estava no primeiro ano de psicologia na Universidade de São Paulo. Era um lugar muito receptivo e acolhedor, ao menos no que diz respeito às minhas vivências não heterossexuais. Se a gente entende que a USP é uma bolha apartada da sociedade, o Instituto de Psicologia (IPUSP ou IP, pros íntimos) era uma bolha dentro da bolha. Eu tive muito espaço para explorar minha sexualidade e aproveitei o que a vivência universitária me proporcionava, conhecendo pessoas parecidas comigo e podendo colocar pautas LGBT+ em discussão todo dia. Eu entrei na faculdade sem qualquer outra experiência que não heterossexual, mesmo que já me entendendo bi. Naquela época, eu não tinha nenhuma pretensão de lutar em militância alguma, eu só queria mergulhar num mundo que sempre tive medo e curiosidade. Descobri coisas incríveis que eu podia fazer, bem como coisas horríveis que os outros podiam fazer comigo. Foi um ano de descobertas.
Em 2014, comecei quase que acidentalmente a entrar em contato com a militância bissexual, majoritariamente pela figura do Bi-Sides, pouco mais que um nome na época. Eu já havia sofrido bifobia, a primeira vindo de um amigo meu da época. Mesmo que a gente tenha conseguido superar isso, eu precisei me posicionar firme sobre o que tinha rolado e sobre como minha bissexualidade tinha sido apagada. Algumas experiências bifóbicas depois, eu corri atrás de referências e pessoas que ressoavam dentro de mim. Ainda nesse ano, surgiu um coletivo LGBT+ no IP. Um colega havia sofrido lgbtfobia de uma professora durante uma das festas universitárias e isso mobilizou os alunos a se organizarem e se estruturarem. No começo, as reuniões eram cheias, mesmo que os encontros fossem desestruturados. Ainda que quase nada de concreto saísse de ações do coletivo, eu me fortalecia tendo um grupo que eu pudesse ter como uma referência próxima e encontros que eu pudesse esperar semana sim, semana não.
Foi lá que tive a minha primeira grande experiência de choque com outras LGBT+. Uma amiga da época estava se descobrindo trans, uma pessoa da minha turma. Numa reunião lotada, uma das inaugurais do ano, essa amiga começa a chorar por conta da disforia que ela vinha sentindo. Eu e uma outra amiga nos levantamos para acolher ela e, quando elas saíram para se recompor no banheiro e eu fiquei na sala, fui hostilizado por veteranos meus por supostamente ter sido invasivo com a minha amiga. Pessoas cis vinham me atacar porque eu acolhi uma amiga trans (e isso que na época eu nem me entendia não-binário ainda), enquanto eles ficaram parados sem fazer nada. Me senti diminuído e percebi que estava num coletivo que era apenas uma fachada de militância mal disfarçada, prevendo a ideia de lacre que tanto hoje a gente vê.
Do mesmo jeito que todos os coletivos da USP estavam ruindo naquela época, o da psicologia não foi diferente. Primeiro as mulheres foram se afastando, com os homens não abrindo espaço para elas. Depois foram as poucas pessoas trans, que já sofriam com a solidão de estar numa universidade que as odeia. Por fim, me vi indo a reuniões com seis pessoas, todos homens gays cisgênero. O coletivo falhou em ser um espaço de acolhimento e segurança para as pessoas LGBT+ do Instituto. Na única reunião que tivemos para falar de bissexualidade, a pauta foi solapada por discussão burocráticas. Se não fosse pela fala de uma colega que veio para aquela reunião especifica, eu não sei se teria me dado conta da atitude bifóbica que atravessou aquele encontro. Eu ainda não conhecia bem a mão da bifobia e a forma como ela é tão mascarada que a gente quase não se dá conta.
Comecei mais ou menos por aí a compartilhar posts de militância bissexual nas redes sociais, mais como um grito de autoafirmação do que qualquer outra coisa. O que me pegou de surpresa foi que comecei a ter muito feedback positivo por conta disso. Pessoas vinham me agradecer por fazer ecoar nossa voz, tão constantemente abafada pela estrutura monossexista. Eu me toquei de que tinha um certo espaço que eu podia ocupar e que fazia a diferença na vida das pessoas, incluindo a minha. Lentamente comecei a militar sem nem reparar que era isso que eu estava fazendo.
Em 2015, eu já era conhecido como O Bissexual do Instituto de Psicologia. Eu era bastante vocal sobre a minha militância e todo dia eu tentava estudar algo novo, tentando entender as nuances da bifobia e o que eu podia fazer para lutar contra ela. O coletivo do Instituto tentou se reorganizar de novo, pensando na nova leva de ingressantes do curso daquele ano. Não demorou muito para os encontros servissem para quase nada. Nunca houve muita lgbtfobia, ou pelo menos de forma escancarada, na psicologia e a necessidade de um coletivo em âmbito local ficava cada vez menor. Foi nesse ano que entrei em contato com a militância de Shiri Eisner, uma pessoa bissexual, trans não-binária e judia. Termos com os quais fui me apropriando e tomando para mim ao longo dos anos. Foi a partir da leitura do artigo de seu blog, falando sobre as semelhanças e diferenças entre bi e pansexualidade que eu me interessei em tocar minha militância por um caminho que aproximasse no começo essas duas orientações sexuais e, com o tempo, todas as pessoas que se atraíssem por mais de um gênero.
Resolvi tocar o meu barco e criar um grupo de acolhimento para todo mundo que não fosse monossexual. Era hora de cuidar dos meus. Foquei na ideia de acolhimento por entender que militância era um termo que estava afastando as pessoas. Resolvi chamar o grupo de Monodissidência, pensando que a dissidência da monossexualidade era uma forma de resistência. O grupo foi um sucesso e ele durou cerca de um ano e meio. Convocando as pessoas através de eventos de Facebook, passamos por alguns institutos da USP e nesse meio tempo fui entrando em contato com outras militâncias e, mais que isso, conhecendo as pessoas que hoje são meus melhores amigos e parceiros de luta. Eu tinha a ilusão de que o que eu estava fazendo não era militância, mas eu entendo que esse é o marco formal de como comecei a minha luta contra a bifobia e o monossexismo.
Os encontros do grupo Monodissidência foram ficando cada vez mais esvaziados e, em 2016, num encontro que somente eu estava presente, decidi que o grupo tinha cumprido seu proposito e era hora de acabar. Enquanto eu estava um pouco triste com isso, entendi que era o momento de eu levar minha militância para novas instâncias. Monodissidência, sem que eu reparasse, se tornou uma ideia de enorme sucesso nas militâncias feitas nas redes sociais. O termo começou a ser usado em outros estados do Brasil, incluindo eventos de magnitude nacional (ou assim tentaram ser). Enquanto militante, percebi que era algo que estava ressoando muito entre as pessoas e que uma empreitada que focasse em unir politicamente todos os que se atraiam por mais de um gênero era o que eu queria fazer.
Comecei a ser chamado para dar palestras e mediar mesas de discussão. Certa vez, logo antes de uma mesa sobre saúde mental bissexual, uma pessoa assexual e arromântica se aproximou de mim e disse que se monodissidente era sobre pessoas que se separavam da monossexualidade, ela, por não se atrair nem sexual e nem romanticamente por outras pessoas, também não era monossexual. Isso fez e continua fazendo sentindo, se entendermos que monossexuais se atraem apenas por um gênero e pessoas ace aro se atraem por ninguém. Levando isso em conta, e pensando que monodissidência busca falar sobre a presença de atração por mais de um gênero, passo a tratar monodissidência como uma proposta político comunitária que contempla todas as pessoas que se atraem sexual e/ou romanticamente por mais de um gênero, não mais como dissidência da monossexualidade. A ideia de dissidência ainda está presente, como uma forma de resistência ao monossexismo e à bifobia, mas já não é a ideia estruturante do termo. Monodissidência fala de pessoas bi, pan, polissexuais, com identidades fluidas, sem rótulo ou que possam a vir ser nomeadas ainda.
Entrei no Bi-Sides no final de 2016 e sigo nele até hoje. Os anos seguiram e fui deixando a estrutura de uma militância pautada na ideia de monodissidência cada vez mais solida. Me formalizei como um dos administradores do grupo de Facebook do Bi-Sides, tentando promover um clima de coesão e aliança, fortalecendo todas as pessoas contempladas pela monodissidência. Com o tempo descobri minha não-binariedade e, se antes ela era só assustadora, agora ela é mais amigável e eu consigo criar um diálogo legal entre ela e a minha bissexualidade, articulando as essas duas instâncias da minha vida, também na militância. Hoje faço mestrado em psicologia, tendo como tema a Monodissidência.
Se trago a minha trajetória, é porque entendo que ela pode indicar rumos para as pessoas que militam e que querem entrar na luta contra a bifobia e o monossexismo. O caminho das pessoas contempladas pela monodissidência é quase sempre muito solitário e eu só cheguei até aqui porque vim acompanhado de amigos e aliados. A monodissidência é um projeto que busca construir uma comunidade, de forma a nos fortalecer em torno de uma causa comum. Enquanto não acho que a monodissidência seja um caminho necessário, é o que eu escolhi trilhar. Somos colocados uns contra os outros, somos apagados, diminuídos e atacados, e acredito que nos mantermos juntos é um ato revolucionário, a primeira pedra a ser lançada rumo a uma realidade diferente.
Sigamos fortes e visíveis.
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