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Foto do escritorKael Avila

Mutante (e bixa) com orgulho

Atualizado: 20 de mai. de 2021

Texto de Kael Avila.


Dia 13 de julho é aniversário de 20 anos do universo dos mutantes no cinema, iniciado no ano 2000 pelo diretor abertamente bissexual Bryan Singer e finalizado recentemente pela compra da Fox pela Disney. Apesar do encerramento abrupto, os X-Men mantém sua importância no cinema por ter iniciado uma nova onda de filmes de super-heróis e também por trazer as narrativas sobre discriminação, em especial LGBTI+ dentro do cinema mainstream.


Antes de começar é bom deixar claro que o Bryan Singer não é, de maneira alguma, um exemplo a ser seguido. Singer coleciona acusações de assédio horríveis e esse texto não serve para glorificá-lo. Ademais o diretor sozinho não faz o filme, e sim toda uma equipe de produção que inclui roteiristas, produtores e atores também importantes. Há uma discussão literária bem complexa quanto à morte do autor, e a dissociação da obra com o artista. Mas independente disso, filmes de grandes estúdios são criados por equipes criativas enormes compostas por pessoas que merecem reconhecimento e menção, como é o exemplo dos roteiristas Simon Kinberg e David Hayter. O trabalho dessas pessoas não podem ser descartado por causa de um único membro. X-Men está longe de ser um filme autoral.


Criado em 1963 por Stan Lee e Jack Kirby na insurgência das discussões raciais, o primeiro gibi dos X-Men apresenta um grupo de uma minoria social fictícia de mutantes — pessoas com superpoderes discriminados pela sociedade que juraram proteger. Apesar da intenção, o quadrinho falha muito quando se põe como uma analogia para discussões raciais, uma vez que é protagonizada por um grupo de pessoas brancas que podem escolher esconder sua mutação, o que afastam muito das próprias discussões raciais. Além disso, eles eram divididos em dois grupos antagônicos: os mutantes que protegem os humanos e os mutantes que querem destruir os humanos. Trazendo para uma alegoria racial, seria no mínimo falha, no duro racista com os movimentos negros e indígenas, que não se dividiam entre os grupos que querem exterminar os brancos e os que querem proteger os brancos.


No entanto, em 1975 que foi publicado o Giant Size X-Men, escrito por Len Wein e com desenhos de Dave Cockrum alguns anos após Stonewall e no meio das insurgências dos movimentos de liberação sexual e de gênero e também na presença forte dos movimentos raciais, em especial os ativistas do Partido dos Panteras Negras. Esse gibi deu abertura para diálogos diretos sobre discriminação, racismo, fascismo e política dentro dos quadrinhos dos mutantes como nunca tinha sido feito antes — pelo menos não com a mesma atenção e propriedade. Nessa história vemos a introdução da Segunda Gênese, equipe formada pela queniana Tempestade, a primeira heroína negra nos quadrinhos apresentada nessa história, o alemão Noturno, o canadense Wolverine, o indígena Pássaro Trovejanete, o soviético Colossos, o japonês Solaris e o irlandês Banshee. O grupo mais diversificado de super-heróis nos quadrinhos até então.


Após essa repaginada, Chris Claremont assumiu o roteiro dos quadrinhos e criou história que discutia ainda mais profundamente as relações de opressão e discriminação de minorias, usando os X-Men como uma ferramenta para falar de vários tipos de discriminação. Algumas histórias encabeçadas por ele são lembradas até hoje, como A Saga da Fênix Negra; Dias de um Futuro Esquecido; Massacre dos Mutantes e Deus Ama, o Homem Mata.


As histórias com o tempo, em especial nos anos 90, foram distanciando das discussões políticas a favor da mega-exposição gráfica. Porém, em 2000 as narrativas de discriminação voltaram em foco com o lançamento do primeiro filme dos X-Men. No prólogo, a personagem Vampira descobre seus poderes beijando seu namorado, o que já cria uma relação com as narrativas LGBTI+ e a descoberta sexual, em especial se considerar que ela foge de casa logo após o olhar de desgosto vindo dos seus pais ao descobrirem sua mutação. O roteiro, de David Hayter, reconhecendo a mutação como genética, tinha a opção de por a narrativa de famílias e talvez comunidades inteiras mutantes. Mas sempre é mostrado um mutante com pais humanos e sempre é colocado em foco o preconceito dos pais quanto aos filhos, uma coisa relacionável com a transfobia e o heterossexismo.


Logo depois já ocorre uma cena com um discurso feito pela mutante Jean Grey no Senado antagonizando com o Senador Kelly. Na cena, o senador fala o seguinte:


"Eu acredito que os cidadãos americanos tem o direito de decidir se eles querem seus filhos nas mesmas escolas que mutantes, que seus filhos falem sobre mutantes".


Só com esse tipo de cena podemos fazer paralelos à nossa realidade brasileira e as opressões do Estado contra pessoas transviadas (ou queer). Em 2019, Jair Bolsonaro afirmou querer proibir a “ideologia de gênero” nas escolas. Bolsonaro ainda diz que tal ideologia é demoníaca e a proibição desse assunto dentro da escola visa o princípio da proteção integral das crianças. Assim como Kurt, isso apenas nos coloca num espaço de violência e não-educação, o nome disso é marginalização. Não está se pensando na proteção das crianças transviadas, mas sim na correção e cura delas. É cronologicamente inviável dizer que David Hayter se baseou na situação política atual para co-criar com Bryan Singer a história do primeiro X-Men, mas também é historicamente irreal dizer que o Bolsonaro é o primeiro caso de incentivo ao heterossexismo, à transfobia e ao machismo. São paralelos que ocorrem pois as discriminações às identidades oprimidas— que é o que os mutantes e os X-Men representam — continuam semelhantes, se não as mesmas.


Ao longo do primeiro filme, acompanhamos o processo de autoaceitação da Vampira, e a aceitação de sua mutação, assim como acompanhamos as discussões políticas sobre os direitos mutantes. Porém é no segundo filme, de 2003 e também coescrito por Hayter, que podemos relacionar de maneira ainda mais clara e direta com as narrativas LGBTI+ com a cena de saída do armário de Bobby. Aliás, essa cena foi dirigida por Ian McKellen, o ator de Magneto e gay assumido, para dar ainda mais semelhança com as nossas narrativas. Na cena, a mãe de Bobby fala frases do tipo “você já tentou não ser um mutante?” ao descobrir a mutação do filho.


Por mais que esses dois filmes tenham sua profundidade própria, é em X-Men: O Confronto Final, encerramento da trilogia, que esses assuntos realmente ganham paralelos mais intensos. É o primeiro da franquia escrito pelo Simon Kinberg. A história do longa toma duas frentes: a da narrativa da cura mutante e a narrativa da Fênix Negra. No caso da narrativa da cura, empresas farmacêuticas e grupos científicos, com a ajuda e recursos do Estado, fazem uma pesquisa e criam uma vacina capaz de supostamente curar mutantes, e isso de certa forma divide a comunidade.


Durante uma assembleia da resistência mutante, Magneto faz um discurso sobre a cura, discurso que exemplifica tanto sua posição política como personagem, quanto a do próprio roteiro. Um pouco mais a frente no filme há um diálogo entre os X-Men em que a Tempestade, o Professor Xavier, o Fera e o Wolverine discutem sobre a cura. O Fera, um Secretário do Governo que cuida de “assuntos mutantes”, defende a cura enquanto a Tempestade, professora e ativista mutante caçada pelo governo, diz que “não há cura para aquilo que não há doença”.



No final, Tempestade estava certa. Todos os mutantes supostamente curados ganham seus poderes de volta. Não tem como curar algo que não é uma doença. No dia 18 de junho de 2018, a OMS desconsidera a transexualidade como doença. Antes disso, pessoas trans, segundo a OMS, eram portadoras de “transtornos de identidade de gênero”. No mesmo ano, o juiz federal Waldemar Claudio de Carvalho liberou a prática da chamada “reversão sexual” por psicólogos. Apesar da decisão ser cassada, levou em debate entre a comunidade LGBTI+ a discussão sobre cura gay e a frase da Tempestade foi amplamente compartilhada na internet por aqueles contra tal reversão, mostrando mais uma vez como as histórias dos mutantes servem ferramentas para a luta contra a transfobia e o heterossexismo, seja a nível simbólico, seja a nível educacional, seja a nível de comunicação. A OMS parou de reconhecer a homossexualidade como doença apenas em 1989. A bissexualidade ainda é reconhecida como sintoma de transtornos mentais.


A cura gay, ou cura mutante, é um movimento que causa exclusão, destila preconceito e abre espaço para o extermínio, por mais que eles não falem e a coloquem como uma escolha individual. Aliás, segundo Magneto, o fato de não se falar de extermínio não tira o fato de que o extermínio acontece. Quando se fala, em especial de pessoas bissexuais e trans, a despatologização ainda é uma luta diária. O próprio reforço do uso da palavra “bissexual” como identidade política é uma consequência disso. A palavra criada pela ciência para nomear uma doença sexual, usada como rótulo político justamente para tirar o poder da medicina e da psicologia de nos tratar como doentes.


Ainda no terceiro filme da franquia, podemos relacionar a cena do interrogatório de Mística, capturada pelo governo por ser uma militante mutante, com as narrativas trans e travestis. Ao ser interrogada, a chamam de Raven Darkholme. Ela reage falando que não responde mais ao seu nome de escrava. O interrogador fala que esse é o nome que a família dela deu, e pergunta se Magneto haviam a feito esquecer que ela tinha família. Ela responde o interrogador falando que a família dela tentou a matar. Podemos relacionar isso, e toda a mitologia que o filme cria com os nomes dos mutantes, com as lutas das pessoas trans em preservar o seu próprio nome, se referindo ao de nascença de “nome morto”. A luta de ser chamada pelo próprio nome também é resistência, e o filme aborda também isso. Nunca chamam a Tempestade de Ororo, o roteiro faz questão de ter uma importância aos nomes escolhidos pelos mutantes de maneira que não vemos em nenhum filme de super-herói. Tente imaginar um filme dos vingadores onde sempre chamam o Tony de "Homem de Ferro". Não dá nem para imaginar, essa escolha de roteiro não é coincidência.


Agora deixando o lado analítico de lado e falando de experiências pessoais, eu me relacionei com a narrativa mutante três vezes na minha vida. A primeira vez foi vendo Confronto Final, ainda criança. O choque de ver a cena do Anjo cortando suas asas no prólogo do filme foi muito pesado para mim. Eu também estava passando por um processo de automutilação, tanto física, quanto de identidade. A segunda vez eu já era adolescente, e a mesma narrativa do Anjo me deu a chave mestra sobre o que eu deveria fazer com minhas asas: voar. Foi quando eu saí do armário para meus amigos mais próximos, falei pela primeira vez que era bissexual com orgulho. Foi quando eu comecei a quebrar as barreiras que fui criando para soar mais másculo, e deixando minha feminilidade voar também. Não iria mais esconder a minha criança viada. É muito fácil para bissexuais entrarem num círculo vicioso de automutilação, são coisas que a falta de identidade e pertencimento faz com você.


No final da adolescência eu tive meu terceiro contato com a narrativa mutante. Foi quando eu fui expulso da casa do meu pai pelo crime de ser quem eu sou, e entrei nos grupos de bi-ativismo, comecei a organizar eventos sobre bissexualidade. Criei uma irmandade enorme e inquebrável, foi o momento que eu entendi tudo que o Magneto e a Tempestade falava. A humanidade sempre temeu aqueles que são diferentes, mas não podemos deixar essas diferenças fazer eles ditarem quem somos. Não podemos mais pedir respeito, precisamos exigi-lo. Porém, devo colocar que não precisamos mais de X-Men para contar nossas próprias histórias.


Os X-Men como metáfora para as pessoas LGBTI+ surgiu em uma época, vulgo começo dos anos 2000, que era irreal pensar em uma história que falasse esclarecidamente sobre nós (e que fosse positiva sobre nós) que pudesse atingiu um número de pessoas à nível global como aconteceu com o primeiro filme dos mutunas. Não dava nem pra pensar em viado, bixa e sapata em blockbuster, e a ferramenta da metáfora e da analogia vem exatamente pra isso. É uma narrativa LGBTI+ de Schrödinger, se você quer que seja vai ter todas as ferramentas pra ser, todas as metáforas, todos os paralelos, todas as nossas questões e todos os nossos traços culturais. Mas se você não quiser que seja, não vai ser também, aliás nem ao menos tem personagens transviados (ou queer) assumidos na história. Acredito que esse tempo passou e o advento da internet deu muito mais poder para produzirmos e compartilharmos um conteúdo que fale diretamente sobre nós, feito por nós. Não basta muita procura na internet para achar curtas e produções transviadas fantásticas e profundas, e temos o poder de compartilhar e apoiar sem precisar apelar para uma megacorporação como a Marvel Comics, a Disney ou a falecida Fox.


Entretanto, os X-Men, em especial os filmes mas também os quadrinhos, estão num lugar de muito carinho, inspiração e admiração dentro de mim. Tudo isso me faz ter muito apreço de celebrar 20 anos de existência, e a esperança que mais pessoas, em especial as mais novas ainda procurando sua própria identidade no meio do caos que é essa descoberta sexual (ou mutante), consigam achar nesses filmes uma história sobre elas mesmas, que consigam se sentir acolhidas nele e consigam também se comunicar sobre as opressões que sentem usando eles de referência. Que consigam, assim como eu estou conseguindo, abraçar as nossas transviadagens, o nosso superpoder, com orgulho.


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