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As Imagens em Mim: O Imaginário e a Produção em Artes Visuais

De Matheus Folha


Me chamo Matheus Folha, sou bissexual, artista visual com bacharel e mestrado na área. Tenho como nome artístico Folha, não só por ser meu sobrenome e apelido durante a adolescência, mas também pela ligação com o desenho, muitas vezes feito na folha de papel. Trago nesse texto um conjunto de momentos importantes para a compreensão dos meus trabalhos produzidos, assim como um pouco dos futuros projetos. Contudo deixo claro já de início que meu trabalho não fala diretamente sobre bissexualidade, mas principalmente do processo de criação que parte do imaginário absorvido durante minha vida até o presente momento.

Residi até o início de 2020 no mesmo apartamento desde pequeno, na cidade de Pelotas, no estado do Rio Grande do Sul (RS). Na casa de meus pais tem uma repartição, um quadrado que liga a sala ao quarto de meus pais, apelidamos de “salinha”. Neste confortável cubículo assisti durante a infância animações e filmes que foram transmitidos através das diferentes televisões que repousaram sobre o mesmo móvel. Em alguns momentos intercalava com a televisão do quarto de meus pais ou a que depois veio a estar em meu quarto, mas somente para assistir aos desenhos do SBT pela manhã ou a (já falecida) TV Globinho.

Entre os televisores do apartamento existia um acontecimento importante em uma família que se entretia visualmente: elas conseguiam de algum modo pegar sinais de canais pagos (as TVs por assinatura, como a NET, por exemplo), mas era algo que acontecia em temporadas aleatórias, durando alguns meses, no máximo um ano. Os sinais fracos, repletos de interferências e chiados eram rapidamente melhorados por um pedaço de fio que minha mãe ou meu pai colocavam na ponta da antena (daquelas simples, de metal e retráteis) com a outra extremidade em um local mais alto, como o forro do teto ou a parte superior da janela. Com maior disponibilidade de canais surgiu um aumento nas possibilidades de ver filmes e animações (isso quando os sinais não desapareciam ou quando chovia e aumentava a interferência).

Lembro de quando assistia o antigo canal infantil FOX Kids, o Cartoon Network, Boomerang, Jetix, Disney Channel, entre outros. Dentre algumas animações estavam: Digimon, Monster Rancher, Os Gárgulas, A Família Addams, X-Men, Chaotic e Os Fantasmas se Divertem. Passando também pelos canais abertos e as manhãs com programação voltada ao público infanto-juvenil, os canais Globo, Record, SBT e Bandeirantes, também os finais de tarde na Rede TV e na Play TV, por meio deles conheci Cavaleiros do Zodíaco, As Aventuras de Jackie Chan, Power Ranger, Pokémon, Dragon Ball, Avatar a Lenda de Aang, Liga da Justiça, Lilo & Stitch, O Máskara, Samurai Jack, Sakura Card Captors e Yu-Gi-Ho! além de outras animações.

Além dos desenhos animados assisti diversos filmes de ficção e mitologia. Após ganhar um aparelho de DVD de minha avó tive a oportunidade de ir a locadora perto de minha casa, nos momentos em que algum membro da família me dava dinheiro não pensava duas vezes antes de ir fazer o aluguel de um filme.

Toda a influência dos mundos ficcionais onde habitavam personagens, cenários e interações diversas, enfatizou-se quando com aproximadamente 12 anos assistia uma animação japonesa chamada “Super Campeões” (1981 – 1988) que foi transmitida na Rede TV, tendo como tema principal o futebol. Analisando esse momento percebi um desvio entre as animações e divertimentos escolhidos por mim ao decorrer dos anos, o futebol, tema da animação citada, não me era cativante. Contudo, os nomes dados às técnicas, como “chute de trivela”, “chute canhão” entre outros, se aproximava aos nomes dos golpes e habilidades de personagens de outras séries, filmes e quadrinhos com tema ficcional. Por exemplo: “Kamehameha” (golpe de alguns personagens da série “Dragon Ball”), “Poeiromancia” (técnica de magia que controla a poeira, apresentada em “Hora de Aventura”), “Canção de Embernova” ( na série “Chaotic” os personagens podiam utilizar cartas chamadas “Mugic” que possibilitavam a utilização de magias dentro do combate entre jogadores), “Polimerização” (carta do anime “Yu-Gi-Ho” que possibilitava a união de duas outras cartas da classe “monstro” do jogador), “Susanoo” (na série animada e mangá “Naruto” alguns personagens da mesma família utilizam a técnica de criar armaduras com suas energias espirituais), “Bankai” (última forma física que a arma dos personagens da série animada e mangá “Bleach” pode atingir), “Dobra” (possibilidade de manipular algum elemento, água, terra, fogo e ar, dentro da série animada “Avatar”), “Nen” (capacidade de manipular a energia vital, da série e mangá “Hunter x Hunter”), “Choque do Trovão” (descarga elétrica utilizada por criaturas do “tipo elétrico” dentro da animação, quadrinho e jogo eletrônico “Pokémon”), entre outros.

A partir desta comparação entre os assuntos do campo do real, o futebol, e os do campo ficcional, o “chute canhão” (por exemplo), percebo as imagens e narrativas da ficção e do fantástico como norteadores da minha produção. Também ao utilizar os desenhos para brincar, criei possibilidades de estar presente dentro destes mundos apresentados pelas animações que assisti, mesmo que parcialmente, através da imaginação.

Lembro de desenhar cartas de “Yu-Gi-Ho!” pois minha família não tinha dinheiro para compra-las. Também já fiz pequenos animais de papel utilizando como molde outras ilustrações recortáveis que podiam ser montadas de modo a criar um objeto, assim podia fazer os desenhos interagirem com os brinquedos pois ambos eram tridimensionais. Criei armas de algumas animações a partir de origamis, desenhava personagens e brincava pela casa imaginando-os a minha volta. Lembro de uma brincadeira onde meus brinquedos eram super-heróis (essa durou alguns dias), os desenhei, pois, suas aparências não eram iguais aos dos personagens que imaginei, mas eram eles as influências visuais. Também adentrei durante a adolescência, nas narrativas de histórias em quadrinhos, em especial as de super-heróis e os Mangás (quadrinhos japoneses), além dos jogos de vídeo game e computador.


Cartas de Chaotic feitas por Folha quando criança

Todas estas relações e atravessamentos fizeram com que chegasse à pesquisa desenvolvida em Trabalho de Conclusão de Curso em Bacharelado em Artes Visuais pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). A pesquisa denominada Entre Coisas – A passagem do Mago (2017) apresentou parte de meu processo artístico, trazendo minha relação com o desenho, atravessamentos visuais e dois pilares principais de minha produção:

- Coisas, desenhos, pinturas e colagens que compunham visualidades de interpretação aberta por meio de quem as visse, possibilitando assim que fossem interpretadas de formas variadas. Esses trabalhos são composições de formas aleatórias preenchidas com as texturas que encontrava nos meus desenhos, parecem bolhas ou poças, apresentam um contorno geralmente ondulado e que mantém a forma indefinida.

- Aliquids, desenhos, pinturas e colagens que compunham visualidades de interpretação fechada que indicam algo a partir de sua composição, contudo ainda causando dúvida a partir da mesma e do nome dos trabalhos. Aliquid é uma palavra em latim que tem como tradução algo ou alguma coisa, estes trabalhos apresentam personagens, situações e/ou cenários. Em algumas produções apresenta os Aliquids com outros nomes que, relacionando com as imagens deste conjunto de trabalhos, ainda mantém algum tipo de estranhamento, um exemplo seria o trabalho Dailyman que gera um significado específico para mim, mas que precisa do imaginário de quem vê para poder criar novos sentidos.

Coisa [1] - desenho - Nanquim e colorização digital - 2019 - Folha

Dailyman - Nanquim e colorização digital - 2020 - Folha

Geralmente enquanto desenhava, principalmente quando comecei a desenvolver meu desenho de uma forma mais livre, me perguntavam “o que é isso que você está fazendo?”, existia alguma estranheza e dúvida nessa relação. Assim me questionei sobre a ação entre o trabalho e aquele que interage com a obra. Esta relação visual e interpretativa foi essencial para pensar as características que possibilitavam diferentes formas de ser dos meus trabalhos e do imaginário do espectador.

Ao analisar o processo de construção de meu trabalho e do imaginário evocado por esses desenhos, percebi uma narrativa ficcional dentro do universo que eu criava. Este se aproximava dos momentos de pausa em que eu assistia algo ou lia uma história em quadrinhos assim como fazia na infância. Desta forma, construía meus trabalhos através dos momentos de devaneios partidos da relação com entretenimento.

Dentro da narrativa ficcional que eu percebia em meus trabalhos as Coisas em suas formas variadas se transformavam em Aliquids, do mesmo modo com que tentamos perceber formas conhecidas em outras ainda desconhecidas ou sem forma específica. Como exemplo posso citar o momento em que olhamos uma mancha no teto e projetamos em seus contornos o rosto de alguém, uma paisagem ou um animal.

Contudo a capacidade de percepção sobre as Coisas não está apenas no projeto finalizado, mas também entre as relações de meus trabalhos. O desenho pode ser pensado como projeto, dessa forma ele lança uma possibilidade de ser, contudo dentro de meu processo de criação essa caminhada entre o esboço e o desenho finalizado é repleto de modificações. Assim o esboço estaria em comparação as Coisas, seria o início de algo que enquanto projeção, processo, acaba se transformando. Cada criação é uma ramificações de possibilidades que, mesmo não finalizadas, ainda coexistem dentro do trabalho finalizado, são parte dele, mesmo que estejam apenas na ideia.

Através da minha percepção de mudanças no processo de criação, assim como a relação entre os esboços para criação dos Aliquids, aproximei dois conceitos aos meus trabalhos:

- Iminência, eterna transformação que se aciona partindo da percepção e da dúvida de quem vê o trabalho exposto, do que pode ser aquilo apresentado, do que seria esta Coisa, potencializado pelas diferentes possibilidades trazidas por outros imaginários, cada vez que alguém interpreta um trabalho ele ganha novos significados, assim nunca se define por completo, mas o que ele é sempre está por vir.

- Imanência, a relação entre os trabalhos dentro de uma narrativa ficcional, vinculados pelas mudanças projeção em meu processo de criação, mas sem indicação de superioridade, de ambiente em que exista um criador e uma criação (pensando a relação de que as Coisas geram os Aliquids), neste conceito ambos coexistem e estão vinculados.

Um dos Aliquids importantes é o Mago, recriado a partir de um personagem que fiz para um RPG e depois para uma história em quadrinhos. Ele é a minha projeção neste mundo imaginário, como se eu me tornasse desenho. A partir desta relação, fiz o caminho inverso, dando corpo ao Mago desenhado, apresentando-o a partir de aparições no mundo real através de performances.Era o ficcional se tornando real.

O Mago - Nanquim e colorização digital - 2019 - Folha

No trabalho de conclusão produzi dois pequenos livros que narravam as Coisas a partir do ponto de vista do Mago.

Primeiramente quando me deparei com elas, as Coisas, não sabia o que eram e erroneamente as usei. Uma correção neste momento, não foi erroneamente, acho que está mais para inocentemente ou cegamente. Enfim, as usei para algum propósito, o de criar (FOLHA, 2017, p. 8).

Durante um período nunca soube certamente o que eram elas, na verdade, provavelmente, até neste momento de clareza aparente eu ainda não esteja ciente do que elas são e nem se seu nome certamente é (são) Coisa (s). Digo isso devido ao fato de que preciso colocar toda a fé no que elas dizem a mim, e nesse momento o que falam é que se chamam Coisas, porém pode ser mentira e posso estar sendo enganado. Que engano bem feito esse (FOLHA, 2017, p. 11 – 12).

[...] pretendo nunca descobrir, pois elas nunca são, elas estão a ser. Há uma distância entre o que elas são e o que elas irão se tornar e nessa distância que coloco confiança. Na verdade, no momento em que uma Coisa acha que está se tornando ela na verdade está apenas transformando-se em uma incerteza diferente, o grande problema... redigo... a grande solução das Coisas é o não ser e suas tentativas imparáveis de quase ser [...] encontrei um local, se é que pode ser chamado assim, que não possui chão nem céu, esquerda e nem direita. Ele é cheio de Coisas e quando elas acham que são somem de lá, um sumiço repentino, sem deixar rastros, em um momento uma Coisa é uma Coisa e repentinamente ela começa a ganhar forma de algo que não é uma Coisa. Plim! Não pertence mais ao mesmo local (FOLHA, 2017, p. 14 – 15).

Este trecho citado acima é do livro/capítulo “O Mago – Livro das Coisas” onde apresentei o surgimento do Mago, assim como sua narrativa e seu ponto de vista sobre as Coisas. O outro pequeno livro é denominado “O Mago – Livro dos Aliquids”, onde nas páginas o Mago os apresentava:

Esses nobres não-seres serão em algum momento uma possível transformação em outro; algo que nunca se tornará definitivo, digo isso dos Aliquids. Também lhe comunico que essas eternas transformações corpóreas fazem parte dos demais presentes neste turvo lugar (FOLHA, 2017, p. 3).

Infelizmente, por algum motivo, não vejo os Aliquids por completo. Em alguns momentos nem todo ele, apenas alguma parte e daí o resto tenho que supor, as vezes me engano e aí já viu, é aquele vexame (FOLHA, 2017, p. 3 – 4).

A maioria deles não possui nome, mas os que possuem o sussurram, um sussurro alto, que retumba em baixas vibrações: “MANDRÁGORA”, “LUGARES MALEÁVEIS”, “MR. MOON”, “LIGHT KISS”... O estridente sussurro fica no ar e adentra todo o orifício de audição. Até o Aliquid ser chamado por aquele nome as palavras não param de zunir. (FOLHA, 2017, p. 3).

Recentemente comecei a aprofundar e modificar as temáticas de minha pesquisa que inicialmente se dava mais pelo desenho, dividindo agora o espaço do desenho enrte o imaginário e a ficção. Durante meu período no mestrado (2017-2019) iniciei um outro olhar sobre o imaginário que me compunha, percebendo ao meu redor a potência que não apenas os desenhos, mas brinquedos e o apartamento em que passei boa parte da minha vida haviam me influenciado.

Da mesma forma por estar na vida adulta ter que lidar com forças de produção que se inserem dentro de uma lógica capitalista as quais influenciam negativamente meu processo de criação. Por ter sido bolsista na época era obrigatório ritmo e ter prazos cumpridos, coisas que interferiram em minha produção.

Desta forma trouxe possibilidades de perceber o entorno como uma forma de meditação, uma pausa deste tempo acelerado. Através destas meditações produzi percepções sobre as ficções imaginadas através das rachaduras das lajotas do banheiro até as marcas nas tábuas do forro. Assim, acabei expandindo a série de Aliquids e Coisas, inserindo cores no que antes era apenas linha, possibilitando novas formas de interpretações. Também explorei a criação brinquedos de papel como fazia na infância, outra forma de possibilitar que ocorram interações entre a pessoa e o trabalho que produzi. Assim surgiram os últimos trabalhos como Céu de Tecido de Planta, Flerte com Lajotas e Em Aguardo de Ser.

Em Aguardo de Ser - impressão a laser sobre papel - 2019 - Folha

Após o período do mestrado estou em um limbo, momento de experimentações e retomada de projetos, ao mesmo tempo tentando encontrar formas de me sustentar financeiramente em um mercado cada vez mais competitivo e com menos oportunidades de estabilidade. Um pouco disso escapa para novos cursos e tentativas de profissionalização dentro da área, coisas que acabam competindo com a produção como artista visual.

O que posso afirmar sobre esse momento atual é que meus projetos e trabalhos recentes estão debruçados sobre os brinquedos de minha infância, pensando em como esse objeto pode assumir diferentes formas, independentemente de como é o seu formato de fábrica.

Assim retomando também o conceito das Coisas, mas voltado para objetos que fazem ou fizeram parte do meu cotidiano e da maioria das pessoas. Junto com isso estou reunindo imagens, prints e fotografias de minha trajetória de vida.

Durante a dissertação trouxe a ideia de um lago imaginário individual, formado pela minha percepção de mundo. Nesse local todas as imagens interagem e a memórias as modificam, criando um chorume imagético.

Essa ideia de imagens misturadas também se relaciona com as interações que fazemos todos os dias através dos diversos aparelhos que nos afirmam também dentro da sociedade. Computadores, celulares tablets... Não digo que são negativos, mas que neles estamos sempre repletos de imagens e nem sempre as absorvemos criticamente, na verdade são em sua maioria atravessamentos vagos, facilmente esquecidos e empilhados em nossa memória mesmo que não lembrados.

A partir desta percepção comecei a produção do que chamo de Chorume do Lǎcināris, são uniões de imagens, parcialmente apagadas e misturas, posteriormente modificadas por um filtro que possibilita a textura líquida e escura do chorume, ainda é incerto sua forma de apresentação, o material onde deveria ser impresso, mas me aproveitando das exposições virtuais deste infeliz momento pandêmico seria algo para se pensar mais tarde.

Chorume do Lǎcināris V - manipulação de imagem - 2021 - Folha

O distanciamento social atual me trouxe as saudades da infância e formas de, através do emaranhado de imagens que citei anteriormente, reformular partes do bairro onde brinquei, é outro projeto ainda indefinido, em fase de teste, mas que me interessa bastante também pelo fato de possibilitar a criação de oficinas para a comunidade, pensando relações entre o espaço e a pessoa, ou da pessoa com momentos relevantes de seu passado, recriados através da ficção da memória.

O desejo de criar oficinas é grande, mas ainda preciso delimitar as coisas que estou fazendo, aproveitando o espaço atual de experimentações e criações. A expectativa é a de que possa, através deste espaço de educação informal, trocar experiências e amadurecer projetos meus com a comunidade.

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