Texto de Kael Avila, arte da capa de OmicronPhi.
O movimento bissexual no Brasil existe há um tempo, talvez começando pela criação do CBB (Coletivo Brasileiro de Bissexual), perpassando pela criação do Bi-Sides há dez anos atrás e chegando nos dias de hoje, onde temos uma diversidade de coletivos e trabalhos autônomos enormes. Porém uma coisa, em nível diferente, permaneceu sempre presente: ninguém sabe o que raios é a bissexualidade.
De fato, ela, assim como qualquer outra sexualidade, passou por várias ressignificações, é difícil traçar uma linha histórica, pois parte da nossa história está perdida, especialmente ao retratar sobre pessoas que se identificam como bissexuais antes de Stonewall.
Acredito que, antes de tudo, seja legal falar sobre o que a bissexualidade não é: ela não é binária, não é moda recente, não é confusa, não é doença. O resto é discutível.
Aliás, apesar de ser clichê falar isso, na Grécia Antiga, em especial entre os espartanos, a atração por vários gêneros era não só uma característica comum, como uma ferramenta de batalha, fazendo os homens se defenderem e apaixonarem entre si durante as guerras e as mulheres se relacionar entre si em suas cidades e ilhas (já ouviu falar da Ilha de Lesbos?). Em outros lugares, a atração por vários gêneros denotava um tipo de equilibro que aproximava a pessoa ao divino. Povos Buntu e Zulu, na África, tinham a tradição anciã de se relacionarem sexualmente após as batalhas. Na verdade, as sexualidades diversas na maioria dos povos africanos, mas em especial os Buntu, eram aceitas e eram cunhados vários termos específicos para abranger a diversidade sexual. Segundo o documentário Majur, essa visão de indiferença era comum também entre os povos nativos do Brasil, isso até a chegada da colonização.
O que aconteceu para essas práticas, que variavam de indiferença à simbolismo de aproximação divina e ferramenta essencial de batalhas, virarem proibidas, patologizadas e as pessoas que a praticarem, genocidadas? Quando foi que passamos de deuses e deusas para doentes sexuais?
O “comportamento bissexual”, ou o ato de se atrair por diferentes gêneros ao mesmo tempo, surgiu junto com a sexualidade humana em si. Porém, quando falamos de bissexualidade, nos referimos à uma identidade sexual marginalizada, e a marginalização do comportamento bissexual é um fenômeno mais recente que o comportamento em si. Falamos da colonização dos corpos que não se limitam ao monossexismo, que aliás desafiam a própria concepção do binário de sexualidade (e talvez até o de gênero) pela sua simples existência e autoafirmação.
O primeiro uso da palavra bissexual, entretanto, foi para designar pessoas intersexo de genital ambíguo, nesse caso o ser "bissexual" seria relacionado a “ter os dois sexos ao mesmo tempo”. O significado da palavra bissexual para pessoas intersexo continuou por um tempo, até o suíço Karoly Maria Benkert, ainda no século XIX, usá-la para designar pessoas que combinariam características heterossexuais e homossexuais simultaneamente. O interessante aqui é que Karoly também criou a palavra “homossexual” e “heterossexual”, no caso ele criou o “homossexualismo” antes do “bissexualismo” e “heterossexualismo” depois. Isso é interessante pois tendemos a acreditar que a bissexualidade, ou até a homossexualidade, vieram depois da heterossexualidade, quando, num sentido de termos, o que aconteceu foi o contrário. Eles primeiro definem quem são os outros, pois heterossexuais não veem sua sexualidade como uma sexualidade propriamente dita, e sim como o normal e o natural.
Freud já usou o termo “bissexual” para designar “pessoas com uma suposta combinação de masculinidade e feminilidade psicológica”, algo que poderíamos relacionar com as pessoas trans não-binárias. E teve Kinsey (sim, o da desatualizada escala Kinsey), que usava a palavra para se referir a uma sexualidade que ficaria no meio exato da sua escala, que vai de heterossexual estrito para homossexual estrito. ¹
Enfim, perceba que “bi”, enquanto sexualidade proposta por Karoly, não serve para dizer algo sobre por quantos gêneros a pessoa tem atração, mas sim que a pessoa une as características das, até então, duas outras sexualidades existentes, a hétero e a homo. Isto é, mesmo antes do movimento bissexual, mesmo dentro da área que viria a nos colocar como doença, bissexualidade não refletia a binariedade de gênero e sim negava a binariedade das sexualidades. Novamente: o "bi", para Karoly, se refere à união de duas sexualidade, e não a atração de dois gênero.
De qualquer maneira, considerando o que a medicina e a psicologia consideram sobre sexo e gênero, não demorou muito tempo para bissexualidade virar sinônimo de atração por homens e mulheres dentro da ciência. A questão mais preocupante, nesse caso, nem é essa. O foco é que a primeira definição de “bissexual” (enquanto sexualidade) foi criada para designar uma doença, ou um transtorno sexual. Bissexualismo foi criado para definir quem seriam os doentes infiltrados nas famílias, para assim conseguir interna-los e reverterem sua sexualidade à normalidade hétero.
É importante pontuar isso. Enquanto o movimento gay e lésbica não usam o nome da sua sexualidade, a homossexualidade, na sigla LGBT por exemplo, bissexuais sim. Não por acaso, o movimento bissexual fala muito sobre a despatologização da nossa sexualidade – considerando aqui que até hoje a bissexualidade é lida como sintoma de transtornos mentais. A importância de criar um rótulo e usar ele com orgulho é justamente de afrontar e combater as definições médicas em tudo que elas representam – e não compactuar com elas em nenhum dos sentidos que elas se apresentam, e isso inclui ir contra o binarismo sexual e de gênero.
Considerando isso, indicar a bissexualidade como binária é tão apagamento da noção política da bissexualidade quanto indicar que “travestis” são “homens homossexuais que se vestem de mulheres”, como indicaria o dicionário e como justamente o movimento travesti vem para quebrar com esse conceito – e o uso do nome é uma parte essencial de tudo isso.
Muito na nossa história antes da Revolta de Stonewall é obscura. É possível, aliás é quase certo, que haviam pessoas que se identificavam como bissexuais e faziam disso um rótulo político, no entanto, foi após a Revolta que a bissexualidade se consolidou num espectro político, em especial um ano depois da revolta em si, quando os bi-ativistas Brenda Howard e Donny the Punk popularizaram a palavra “orgulho” e co-organizaram a primeira Parada do Orgulho.
Após somar e construir vários eventos LGBTI+, incluindo sua atividade da Act Up (grupo LGBTI+ que militava em favor dos nossos direitos durante a crise do HIV), Brenda ajuda a fundar a New York Area Bisexual Network, a BiPac, a Bialogue, a BiNet USA, a Bisexual S/M Discussion Group e vários outros grupos, coletivos e organizações construindo o movimento bissexual organizado.
Nessa época a bissexualidade era um termo que abraçava todos que não eram nem homossexuais, nem heterossexuais.
Nos anos 90, entretanto, várias coisas aconteceram. É entendido que havia começado uma discussão sobre a posição da bissexualidade diante da transfobia dentro da própria comunidade LGBTI+. Foi nessa época que o movimento pansexual se popularizou, já tendo existido antes, em especial atrelado com o movimento hippie, mas agora ele se apresenta como uma nova identidade com novas políticas centradas principalmente na luta das pessoas trans não-binárias.
Foi diante das discussões sobre a transfobia dentro da comunidade que o movimento pan ganhou força e popularidade. Entretanto, parte do movimento bi achou que a luta do uso da palavra bissexual ainda não tinha acabado, bissexuais ainda eram lidos como loucos, pervertidos sexuais e doentes, logo o uso desse nome como político ainda seria relevante. E também houve aqueles que na época decidiram lutar dentro dos dois rótulos ao mesmo tempo, uma vez que a bissexualidade e a pansexualidade não se excluíam entre si.
Entretanto, seria essencial também se posicionar contra a transfobia na comunidade bissexual e contra o binarismo de gênero. Foi quando publicaram o Manifesto Bissexual na revista de e para bissexuais “Anything That Moves”:
Esse é, acredito eu, o marco mais importante quando entendemos a bissexualidade enquanto política. É o manifesto que seguiu como guia e inspiração para todos os movimentos bissexuais que surgiram depois, com a clareza em suas lutas, pautas, termos, preconceitos e definições.
Quando se pergunta o que a bissexualidade é, ela é esse manifesto. Autoexplicativo.
Desde os anos 90 a bissexualidade documentalmente se opôs contra a transfobia, contra os binários de gênero e sexualidade. É no mínimo curioso que essa questão esteja sempre, mesmo assim, se sobrepondo às nossas vivências, a famosa critica de que a bissexualidade seria inerentemente transfóbica. Enquanto os monossexuais nem ao menos decidiram se gostam de gênero, de sexo ou de genital. Os termos “homo” e “heterossexuais” também se relacionam com um conceito binário e cisgênero, uma ideia que há dois gêneros, um oposto e um mesmo. É como se a bissexualidade estivesse numa outra discussão do que a hétero e homossexualidade, como se as criticas já não tivessem sido perpassadas há décadas. Nos vemos falando exatamente a mesma coisa quase toda vez.
Aliás, nenhuma sexualidade impede alguma pessoa cis de ser transfóbica, isso é um fato, nem a pansexualidade se ouso dizer.
Quanto a definições: há várias definições que se usam para a bissexualidade. Uma delas é que é “a atração por mais de um gênero”, fazendo referência ao momento da história em que a definição de bissexualidade era sobre pessoas que não eram nem homo nem hétero. Outra definição é a de “a atração por gêneros iguais e diferentes ao seu”, que eu particularmente uso pois faz referência também à dicotomia indicada na palavra que se relacionaria à dualidade de se atrair pelo mesmo gênero e por outros gêneros, tirando alguns argumentos que poderia haver quanto à bissexualidade ser binária e ao mesmo tempo podendo abranger uma infinidade de maneiras de lidar com a própria sexualidade, que no final das contas é o que a bissexualidade é, desprendida e fluída. Contra qualquer e todo sistema binário, seja o de sexualidade, seja o de gênero.
Quando falamos ainda da bissexualidade das pessoas brasileiras e latinas em geral, nos deparamos com outras relações de gênero e sexualidade diferentes daquelas que forjaram as políticas bissexuais nos EUA e na Europa. Vemos movimentos autônomos e coletivos bissexuais fortalecendo a luta localizada. Fortalecendo-nos enquanto bissexuais brasileiros, nesse país que precisa de um movimento bissexual com políticas próprias e centradas nas nossas vivências. No entanto, para cada passo que damos, temos que voltar cinco para explicar o que somos (como se fosse mesmo tão difícil de entender). Todo ativista bissexual, alguma vez na vida, já teve que parar algum projeto incrível para fazer uma atividade tentando definir e explicar a bissexualidade – parece até um rito de passagem obrigatório dentro do ativismo.
Definir e unificar significados não deveria ser uma questão tão grande, principalmente porque temos definições bem concretas e abraçadas desde os anos 90. A discussão já acabou lá.
Ninguém fica caçando homossexuais na rua e indagando a definição de suas sexualidades – que ouso dizer, quando paramos para pensar, pode gerar tantas questões e dúvidas quanto a bissexualidade, ou até mais. Que raios significaria “o mesmo gênero” para pessoas trans, que transitam entre gêneros diversas vezes na vida, ou para pessoas de gênero fluído, ou ainda pessoas que ainda não conseguem ou não querem definir o próprio gênero? Uma pessoa agênero que é homossexual só iria se atrair por outras pessoas agênero durante toda sua vida sem exceção? Nos casos de pessoas não-binárias, qual seria “o gênero oposto”? Aliás, é consensual que homo e heterossexuais se atraem mesmo pelo gênero das pessoas ou a ideia é que eles se atraem pelo sexo? Se for isso, como pessoas intersexo poderiam ser homo ou heterossexuais? Se há mais de dois gêneros, pq raios os monossexuais definiram um oposto e um mesmo? Quem que decide qual gênero é o oposto de qual? Quem que decidiu que o "homem" e a "mulher" seriam os gêneros que entrariam nesse jogo de "mesmo gênero" e "gênero oposto", que definem, respectivamente a homo e a heterossexualidade, e todos os outros infinitos gêneros não?
A razão disso acontecer tanto apenas conosco é bifobia, é invalidação, é a segurança do monossexismo de que a bissexualidade não é uma coisa de verdade, não é uma coisa definida. “E já que nem eles mesmo sabem quem são, por que raios eu teria que respeitar?”
Podemos fazer muito mais do que apenas nos definir todo dia. Eu estou particularmente cansado de falar exatamente a mesma coisa toda hora, estou simplesmente ignorando as indagações e mandando links do Manifesto. Quero fazer parte de um movimento que faça muito mais, e acredito que estamos caminhando pra isso.
Independente como você define tudo isso, essa (bi)sexualidade é um movimento social, e esse movimento social é feito por pessoas. A bissexualidade são elas, somos nós que a construímos e a ressignificamos como bem entender.
Não vai ser ninguém que irá nos reduzir aos termos médicos e patológicos, nos reduzir a definições que não criamos e não concordamos. A bissexualidade é essa luta, é essa luta que nós lutamos por anos.
Referências principais:
1. Mary Zeiss Stange; Carol K. Oyster; Jane E. Sloan (2011). Encyclopedia of Women in Today's World. Sage Pubns. pp. 158–161. ISBN 978-1-4129-7685-5.
LEWIS, Elizabeth S. Não é uma fase”: construções identitárias em narrativas de ativistas LGBT que se identificam como bissexuais. Programa de Pós-Graduação em Letras, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 2012. Disponível aqui.