Saúde e Bissexualidade - micro agressões, estigmas e estereótipos que adoecem
Há duas pautas importantes no mês de Setembro, que se atravessam: a visibilidade bissexual e a prevenção ao suicídio. Pesquisas indicam que as micro agressões, os estigmas e estereótipos que acompanham a bissexualidade aumentam as taxas de risco à saúde mental e sexual, além de pensamentos e tentativas de suicídio, que são maiores comparadas a pessoas monossexuais, inclusive gays e lésbicas. Se a própria identidade é invisibilizada, mesmo dentro da comunidade LGBTQIA+, abordar a saúde mental e sexual de bissexuais é um tema que pede urgência e unidade com a pauta da visibilidade.
A bissexualidade é um assunto que tem se tornado mais presente na sociedade. Pessoas públicas se identificando com a orientação, personagens fictícios sendo apresentados como bi, toda essa representatividade tem lembrado as pessoas de que o B da sigla LBGTQIA+ está ali e não é para fazer ligação das lésbicas aos gays. Mas ainda existe a assombração do estigma que cerca essa orientação sexual e permanece, de modo presente, adoecedor e mantenedor de todas as discriminações que afetam pessoas bissexuais e que não alcançam as pessoas monossexuais, inclusive gays e lésbicas.
Levantar essa pauta já é, por si só, um movimento desgastante. O silenciamento vem de dentro da própria comunidade, aumentando as próprias batalhas, pois além da luta pessoal de autocompreensão sexual e as saídas do armário em cada novo relacionamento, é como se a a existência bissexual fosse colocada à prova o tempo todo.
Bifobia
Há diversas pesquisas sobre a saúde física, mental e sexual de pessoas bissexuais, que comprovam o quanto a bifobia é real. Existe um artigo que reúne estudos de cinco anos sobre o tema, o “Bissexuality, minority stress, and health” (“Bissexualidade, estresse de minoria e saúde”), publicado no American Journal of Public Health, em Março de 2017, que nos traz elucidação sobre a saúde de pessoas bissexuais, apresentando os índices, as causas e as intervenções necessárias para mudar esse quadro.
O artigo usa o termo “binegatividade” para referir-se aos termos e pensamentos específicos sobre indivíduos bissexuais, além da forma como é recebido e internalizado. É interessante notar a diferenciação das pesquisas entre pessoas que se identificam como bissexuais e as que relatam comportamentos bissexuais. Parte disso se deve à falta de aceitação da própria orientação sexual, seja por incompreensão mesmo ou medo da falta de acolhimento da sociedade.
E por falar em falta de acolhimento, a pesquisa descobriu que pessoas bissexuais tendem a esconder mais a sua orientação, comparado à lésbicas e gays. Se identificar como bissexual dentro da comunidade LGBT foi associado à binegatividade (podemos chamar de bifobia), pois é recebida com estigma e discriminação. Na mesma pesquisa é apontado que essas atitudes bifóbicas aumentam os problemas de uso de substâncias, por mulheres bissexuais, além de gerar consequências negativas para sua saúde mental.
Uma questão interessante que apareceu nas pesquisas é que, devido à falta de acolhimento por se identificar como bissexual, pessoas não monossexuais costumam se identificar de forma diferente, de acordo com os contextos, usando uma orientação sexual secundária. Por exemplo, é comum entre bissexuais serem abertos sobre a não heterossexualidade, mas não se identificarem publicamente como bissexuais. É mais fácil ser aceita como lésbica ou gay do que como bissexual, dentro ou fora da comunidade LGBT!
Invisibilidade
Apagamento e invisibilidade são questões reais da bissexualidade. Não é à toa que chamamos de o “Mês da VISIBILIDADE bissexual”. Esse apagamento carrega estereótipos do que é ou não ser bissexual “de verdade”. “Meio hetero/meio homossexual” é uma das definições utilizadas. Como se pessoas bissexuais não fossem seres integrais, como se algo estivesse faltando, que precisa de complemento. Da mesma forma que a pessoa bissexual é invisibilizada em relacionamentos afetivos e/ou sexuais; se está em uma relação monogâmica com alguém do mesmo gênero ou de gênero diferente do seu, já é lida como homossexual ou heterossexual.
Mas ainda há aquele questionamento binário de aprovação: “com quantos homens e mulheres você já ficou pra saber se é bissexual mesmo?”. Ou para ser uma pessoa bissexual de verdade, não pode ser monogâmico, precisa se relacionar com mais de um gênero ao mesmo tempo. A bissexualidade exige validação externa, seja de pessoas heterossexuais ou de pessoas LGBTQIA+. Quem faz essa validação? Baseada em quê?
Dados qualitativos indicam que essas experiências de deslegitimação da bissexualidade, apagamento da identidade sexual e sentimentos de invisibilidade são as principais causas de riscos à saúde mental e está diretamente associado a problemas de depressão e uso de álcool.
Micro agressões
Um dos argumentos recorrentes usados para desvalidar a luta bissexual é a de que não há risco de morte ou agressões por ser bissexual, principalmente em relações que são lidas como heterossexuais (quando há envolvimento de uma pessoa bissexual com alguém de gênero diferente ao seu). Além de não ser verdade - essa questão vai ser melhor explorada em seguida - podemos destacar algo que pessoas bissexuais sofrem mais do que as pessoas de orientações monossexuais: são as microagressões. Agressões sutis, desprezo verbal ou não verbal, insultos, que reforçam estereótipos sobre ser bissexual. Segundo a pesquisa “Só uma pequena dica: microagressões específicas para bissexuais com sua conexão com injustiças epistêmicas”, há estudos que descrevem a existência de discriminações que são vivenciadas apenas por pessoas bissexuais.
Alguns exemplos: presumir que a pessoa bissexual é heterossexual em relação monogâmica com alguém de outro gênero; afirmar que bissexuais são pessoas confusas ou gays/lésbicas que ainda não tiveram coragem de sair do armário; associar bissexualidade com promiscuidade e incapacidade de manter relações monogâmicas; não ser acolhide entre lésbicas e gays; enteder que bissexuais são vetores de IST e HIV, por se envolver com mais de um gênero; hipersexualizar pessoas bissexuais, principalmente mulheres, e objetificar seus corpos apenas para o ato sexual, inclusive entre casais; entre outros.
Foi descoberto em outro estudo que pessoas bissexuais relataram experimentar uma média de 1,3 microagressões por dia e que experimentar microagressões mais frequentes foi associado ao aumento da ansiedade. Se durante tanto tempo a bissexualidade foi considerada um sintoma de alguma patologia, geralmente associada à transtornos de humor, a partir desses estudos fica nítido que é esse tipo de associação que adoece. O transtorno não é a “confusão da orientação sexual”, mas ele aparece com a repetição do sofrimento psíquico e adoecimento, ao ser considerada confusa simplesmente por ser bissexual.
Violências físicas e sexuais
Ainda sobre agressões, há evidências de que bissexuais têm altos índices de se tornarem vítimas de ameaças e agressões físicas mais altas em comparação com pessoas heterossexuais e alguns tipos mais altas em comparação com gays e lésbicas.
Há também pesquisas sobre o risco de violência sexual infantil, estupro e outras formas de violência. As taxas para violência sexual infantil são 12,8 vezes maiores para homens bissexuais em comparação com homens heterossexuais e 5,3 vezes mariores para mulheres bissexuais comparadas com mulheres heterossexuais.
As taxas de estupro e outras práticas sexuais violentas são substancialmente maiores entre mulheres bissexuais:
Violências sexuais contra mulheres bissexuais
São dados reais, que parecem ser misturados entre as agressões por homofobia (lesbofobia) e assim, apagados. É importante pontuar não só a existência da identidade, mas também o fato de que as agressões não só afetam pessoas bissexuais, como podem superar em números. Esses dados específicos são baseados em pesquisas realizadas na América do Norte, porém nos norteiam sobre questões que não tínhamos acesso até então.
Saúde mental
E como estamos falando de dados, uma pesquisa recente identificou dois componentes da bifobia internalizada, um afetivo (sentimentos negativos sobre ser bissexual) e um de estereótipo (esteréotipos internalizados de que a bissexualidade não é uma identidade válida ou estável). Já se pegou questionando a validade da orientação sexual de uma pessoa bi, perguntando se não era apenas uma fase ou reafirmando aquela brincadeira de ser “biscate, bipolar e bissexual”? Bissexuais se questionam mais sobre a própria orientação sexual do que gays e lésbicas. Estudos apontam que esses questionamentos estão associados à depressão e sofrimento psicológico.
Bissexuais têm maiores taxas de problemas de saúde mental comparada a pessoas monossexuais. É importante enfatizar que essas questões não vêm acompanhadas com a orientação sexual; você não é presenteado com algum transtorno de humor quando se entende como bissexual. A forma como a sociedade apaga, invisibiliza, desvalida, deslegitima, estereotipa pessoas bissexuais é extremamente adoecedor. De tal forma, que é possível ter bifobia internalizada antes mesmo de se entender como uma pessoa bissexual e aumentar esse quadro.
Dito isso, vamos ver alguns dados sobre a saúde mental de pessoas bissexuais, comparadas a pessoas monossexuais, compreendendo que a associação à bissexualidade, não é pela identidade sexual em si, mas pela forma com que a sociedade nos coloca como indivíduos. Entre as pessoas bissexuais há taxas aumentadas de transtorno de humor e ansiedade:
Transtorno de humor, ansiedade e bissexualidade
Apesar da similaridade dos homens que se identificam como gays e dos que se identificam como bissexuais, entre os que têm comportamentos bissexuais, o resultado é maior entre homens bissexuais (46,5% versus 26,8% para transtornos de humor e 38,9% versus 25% ansiedade).
Depressão, pensamentos suicídas e bissexualidade
Saúde sexual
Quando se trata de saúde sexual, as pesquisas também indicam aumento de taxas de risco entre pessoas bissexuais. Mas antes de olharmos os dados, vale destacar que entre as pesquisas citadas, há diferença entre pessoas que se identificam como bissexuais e as que se identificam como heterossexuais/homossexuais com comportamentos bissexuais. Talvez pelo que já foi mencionado acima, o estigma e a bifobia internalizada faz com que essas pessoas não se assumam como bissexuais. Mas isso também intensifica a problemática da saúde sexual, pois quando um indivíduo se relaciona escondido, a tendência é a falta de cuidado com prevenção e uso de substâncias. Antes de usar os dados para apontar pessoas bissexuais como as mais perigosas em relação à saúde sexual e prevenção, é preciso mudar justamente esse pensamento estereotipado e estigmatizante sobre elas.
Pesquisas indicam que homens bissexuais têm maior risco de contágio por HIV do que homens heterossexuais. Homens que se identificam como bissexuais relatam mais comportamento de risco em comparação a homens gays, como início sexual precoce e mais parcerias sexuais, sexo sem preservativo e uso de substâncias antes do sexo. Homens bissexuais também fazem menos testes de HIV comparado a homens gays e usam preservativo com menos frequência em parceiros masculinos em comparação com parceiras femininas.
As taxas de IST entre mulheres que se identificam como bissexuais e mulheres que se identificam como heterossexuais, mas têm comportamentos bissexuais, são maiores do que entre as mulheres que se identificam e têm comportamentos heterossexuais. Diversos estudos também apresentaram taxas mais altas de gravidez na adolescência entre mulheres lésbicas em comparação com lésbicas e mulheres heterossexuais.
Intervenções necessárias
Diante de todos esses dados a respeito da saúde mental e sexual de pessoas bissexuais, é preciso avaliar e intervir. Quais seriam as melhores intervenções para mudar esse quadro? É preciso fazer um trabalho de intervenção sobre o estigma internalizado e a sensibilidade à rejeição, através de terapia voltada para a regulação da emoção e assertividade. Entre as pessoas bissexuais é necessário a consciência da própria identidade e orientação afetivo-sexual, o entendimento das micro agressões diárias (apagamento, invisibilidade, desvalidação), para aprender ferramentas e ser capaz de lidar com elas.
Trabalhar a compreensão da própria identidade, as estruturas da sexualidade não binárias, as existências de gêneros, identidades, orientações românticas e sexuais, as expressões de gênero e a diversidade de existências é uma intervenção de educação sexual urgente e para todas as pessoas, não apenas bissexuais. Também é válido trazer representatividade de pessoas bissexuais, já que a inspiração em outras pessoas é algo saudável, além de trazer a sensação de pertencimento.
Buscar acolhimento e validação é mais do que necessário. A sociedade já é excludente em diversos aspectos: classe, raça, gênero, capacitismo, gordofobia, sorofobia e tantas outras possibilidades de exclusão. Fazer parte de algo coletivo é saudável. Infelizmente, nem todos os espaços entendem a bissexualidade, como foi abordado neste texto, portanto, encontrar acolhimento é parte importante para a saúde mental e sexual. E não pode faltar o trabalho com viés de gênero, raça e classe. Se falamos de apagamento e visibilidade, é importante pontuar as nuances de cada estrutura e o quanto algumas pessoas são mais afetadas do que outras.
Reflexão e mudança de postura
As pautas sobre a visibilidade bissexual, luta contra os estigmas e invalidações tão adoecedoras, alidas à prevenção do suicídio, são temas necessários todos os dias do ano, não apenas no mês de Setembro. É urgente que se tornem prioridade e que caminhem lado a lado para que, de fato, a sociedade compreenda a importância desse assunto.
Que haja acolhimento para cada pessoa bissexual, especialmente as que se encontram lutando por sua saúde mental.
Não tenham medo de buscar ajuda profissional.
Disque 188 ou entre no site do CVV, caso sinta necessidade.
Aproveite as redes sociais para buscar coletivos e movimentos sociais de acolhimento LGBTQIA+ e bissexuais.
Texto: Priscila de Oliveira Cardoso Pereira
Sexóloga | Educadora sexual
Fundadora da Segredos de Lilith
Olá! Seria possível informar as fontes das pesquisas citadas?